C. N.
2.º O
liberalismo do chamado magistério conciliar
As normas e
as instituições vaticanas anteriores ao Concílio Vaticano II eram-no de uma
Roma que desde o princípio fora mestra da verdade diante do mundo. Por isso
mesmo, aliás, é que não se pôde ver nada de muito especial no breve pontificado
de João XXIII, papa não só reconhecidamente tendente ao liberalismo: era, além
disso, muito otimista com respeito à situação da Igreja no mundo
(contrariamente ao sentir detodos os papas anteriores). Mas a
natureza mesma de um concílio ecumênico seria ocasião propícia para transformar
tudo isso, razão por que os espíritos mais lúcidos desaconselhavam com firmeza
sua convocação: seria como abrir as portas a um liberalismo “católico” já muito
forte e muito estendido.
Pois bem, a
transfiguração liberal da autoridade suprema deu-se já com as decisões tomadas
na primeira sessão do concílio.[1] É verdade que Paulo VI fala de
sua própria autoridade de maneira antes tradicional; já aexerce,
todavia, de modo efetivamente liberal, além de que, conforme os
católicos deixavam de assombrar-se com as novas liberdades que iam adquirindo,
o magistério conciliar passou a explicar sua natureza de modo mais aberto. Os
princípios liberais tinham sido lançados nos documentos conciliares, e muito
prontamente começaram a frutificar. Estava apagada a candeia da cátedra romana.
É o momento,
porém, de que mostremos as três diferenças distintivas do exercício
da autoridade liberal “católica”.
• Antes
de tudo, o próprio e novo “caráter
pastoral” do concílio. Com efeito, todos os concílios tinham tido caráter
pastoral, o que decorre de que sempre se tinham reunido para resolver sérios
problemas do âmbito da Igreja. Mas já a convocação do último concílio anuncia
seu caráter pastoralcomo algo radicalmente novo. Ora, a diferença entre o
antigo caráter pastoral e o novo reside em que para os pastores tradicionais,
de São Pedro a Pio XII, o primeiro cuidado pastoral era a definição dogmática
que aqueles sérios problemas requeriam, enquanto para os pastores conciliares
nada é mais oposto ao caráter pastoral que a definição doutrinal. De fato,
todos os documentos do Vaticano II reafirmam seu caráter “pastoral” justamente
para justificar a falta de definição doutrinal. Em verdade, este caráter é o
caráter de uma pastoral liberal, que padece o falso conflito entre
a autoridade e a liberdade (que já mostramos em outra postagem desta série). E
esse mesmo sofisma foi o que freou as tentativas de dissolver as ambiguidades
sob as quais se escondiam os princípios liberais.[2]
• Depois
vem a nova infalibilidade do sensus
fidei (senso da fé). Sempre se ensinou (e repete-o Santo Tomás
na Suma Teológica) que o conjunto
ou universalidade dos fiéis não pode errar ao professar uma verdade
como sendo de fé: dizer o contrário vai contra o dogma da indefectibilidade da Igreja. Mas a
infalibilidade dos fiéis é consequência da infalibilidade do magistério, o
sujeito único[3] do carisma da verdade
indefectível.[4] Ora, o magistério conciliar
inverte-o: para ele, o sujeito primeiro e imediato da infalibilidade não é a
hierarquia, mas “todo o povo de Deus”, como se lê naLumen Gentium, a
carta magna ou constituição desta visão liberal. Insista-se: como sempre
dissera a doutrina tradicional, só a hierarquia participa propriamente do
sacerdócio de Cristo, e só ela tem então a função de ensinar com o carisma da
infalibilidade. Mas a Lumen Gentium sustenta que do sacerdócio
de Cristo participa primeira e imediatamente toda a Igreja.
Assim, todo cristão, pelo simples fato de ser batizado, já é sacerdote segundo
o “sacerdócio comum” e coletivo de todo o Povo de Deus; e, dentro do sacerdócio
comum, há diferentes serviços, o principal dos quais é o “sacerdócio
ministerial” da hierarquia. Portanto, para o neomodernismo, a função docente
pertence primeira e imediatamente não à hierarquia, mas a todo o povo de Deus.
Deve fazer-se, no entanto, a seguinte precisão: agora já não se trata
propriamente de ensinar – com efeito, ensinar a quem, se todos participam de
tal função? –, mas de dartestemunho vivendo a fé diante dos
incrédulos. Seria, então, uma função “profética” do “sacerdócio comum”, que
goza de infalibilidade comum e que tem por princípio o “senso da fé” e por
sujeito, repita-se, a Igreja inteira.[5]
Desse modo,
o depósito da fé não teria sido confiado somente aos Apóstolos e a seus
sucessores, mas aos “santos”, quer dizer, à “totalidade dos fiéis que têm a
unção do Santo”; por conseguinte, o Espírito Santo não assistiria somente à
hierarquia com os carismas do magistério infalível, mas a todos, suscitando
neles o sensus fidei [senso da fé]. Segundo o neomodernismo
conciliar, portanto, como escreve o Padre Álvaro Calderón em A Candeia
Debaixo do Alqueire, “a hierarquia participa da função profética por duas
razões, uma geral enquanto simples membros do Povo de Deus que não carecem do
senso da fé – ‘desde os Bispos até o último dos fiéis leigos’ –, e outra,
especial, enquanto ministros ordenados que ‘guiam’ o Povo de Deus na tarefa
comum de conservar, aprofundar e aplicar a fé. Esta função especial a serviço
da função ‘profética’ comum não é de menor importância, porque, enquanto a
hierarquia não unificar e autenticar o pensamento comum, este não pode dizer-se
‘verdadeira palavra de Deus’”.[6]
Está
subordinada, assim, a função do magistério hierárquico à do sacerdócio comum.
Mas o n. 25 da Lumen Gentium faz uma síntese perfeita da
doutrina tradicional da infalibilidade do papa e dos bispos. Por que o faz?
Para que os padres conciliares que estavam inquietos com as novidades dos
primeiros parágrafos pudessem tranquilizar-se. Efetivamente, porém, no novo
marco do “sacerdócio comum”, todas as expressões clássicas devem ser
reinterpretadas, o que o magistério conciliar seguinte ao concílio não perderá
oportunidade de fazer explicitamente.
Em suma,
para a doutrina católica o poder de ensinar infalivelmente é comunicado por
Cristo primeira e imediatamente ao papa, ainda que os bispos e o conjunto da
Igreja também participem dele, mas de modo diverso (os bispos de modo ativo, e
o conjunto da Igreja de modo passivo). Para a doutrina liberal conciliar,
contudo, a função de expressar a fé com infalibilidade (termos que, como visto,
adquirem novo significado nesta mesma doutrina) é comunicada por Cristo
primeira e imediatamente a toda a Igreja, enquanto a hierarquia apenas
participa dela cumprindo o serviço de unificá-la como mediadora.
• Por
fim, esse mesmo novo
“serviço da unidade”. É verdade que Hans Küng tirará a conclusão,
coerente mas extrema, de que já nem sequer é preciso falar de infalibilidade.
Por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé vê-se obrigada a publicar a
declaração Mysterium Ecclesiae, de 24 de junho de 1973, onde se
assinala a doutrina da Lumen Gentium sobre a dupla
infalibilidade, “da Igreja universal” e “do magistério da Igreja”.[7]Mas, como diz ainda o Padre
Calderón no mesmo livro, sustentar “que o consentimento dos fiéis em pelo menos
uma verdade de fé deve ser reconhecido como infalível por seu
mero sensus fidei [senso da fé], de maneira anterior à proposição
do magistério, já implica negar que o magistério da Igreja seja a regra próxima
e necessária da fé. Segundo a verdade católica,
Jesus Cristo comunicou somente aos Apóstolos e seus sucessores a autoridade de
seu próprio magistério: ‘Quem vos ouve, a Mim me ouve’ (Luc. 10, 16), e só a
eles os enviou a ensinar: ‘Ide e pregai o Evangelho, [...] o que não crer será
condenado’ (Mar. 16, 15). Se a profissão de fé da universalidade [ou conjunto]
dos fiéis pode ser julgada infalível, é porque pressupõe a
sanção anterior, ao menos tácita, do magistério; porque o verdadeiro católico
não pode nunca estar certo dos pensamentos surgidos em sua meditação enquanto
não os vir confirmados pela autoridade da Igreja. Segundo a mentira liberal, em
contrapartida, a comunidade eclesial inteira é inspirada e enviada, de maneira
que a verdade evangélica surgiria da meditação comum: se todos creem na mesma
coisa, a hierarquia tem o dever de sancioná-la. A certeza de seu consentimento
é tomada, então, não da pregação exterior das testemunhas autorizadas [...],
mas do senso interior da fé em contato imediato com a Verdade substancial”.
Sucede
ainda, no entanto, que a Lumen Gentium diz que ao menos às
vezes o magistério pode predispor os fiéis ao consentimento – e até exigi-lo!
Seria isso uma concessão à doutrina tradicional? De modo algum. A doutrina
modernista ou liberal reconhece que a autoridade tem não só uma função
unificadora da interpretação comum da Igreja em cada
momento, mas também uma função conservadora, para que a comunidade
eclesial não perca sua identidade com o passar do tempo.[8]À autoridade competiria,
portanto, fazer valer algumas fórmulas chamadas “dogmas” que expressaram a fé
comum em tempos passados, fórmulas já sancionadas outrora pela autoridade. Se
pois agora o magistério predispõe ao consentimento e até o pode exigir quando a
certos pontos, não é por “autoritarismo”, mas porque, “como comunhão de fé, a
Igreja é uma comunhão na palavra da confissão; por isso, cabe à unidade da
Igreja tanto diacronicamente [ou seja, ao longo do tempo] como sincronicamente
[ou seja, agora, em dado momento] também a unidade nas palavras fundamentais da
fé [= dogmas] que não são revisáveis, se não se quer perder de vista a ‘coisa’
expressa nelas”.[9] Para o modernismo liberal,
por conseguinte, a sanção da autoridade é sempre posterior e dependente do
consentimento da comunidade; enquanto, para a doutrina católica, o
consentimento universal é sempre, em última instância, posterior e dependente
da sanção – ao menos tácita – do Romano Pontífice.
(Continua.)
(Continua.)
[1] Cf., por exemplo, The Rhine
Flows into the Tiber. A History of Vatican II [O Reno Lança-se no Tibre…], 1.a ed., Nova York,
Hawthorn Books, 1967.
[2] Na primeira sessão do
concílio, D. Lefebvre assinalou a necessidade de propor textos dogmáticos em
que se formulasse a doutrina de modo preciso. Mas sua proposta, segundo ele
mesmo, “foi objeto de violentas oposições: ‘O Concílio não é um concílio
dogmático, mas pastoral; não queremos definir novos dogmas, mas expor a verdade
pastoralmente’”. Cf. Acuso el Concilio, Buenos Aires, Iction,
1978, p. 25; Fr. Pierre-Marie O.P., “L’autorité du Concile”, in Le Sel
de la Terre, n. 35, p. 38-39.
[4] Cf., por exemplo, Ioan.
Bapt. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, ed. 3.ª, Romae
1882, Thesis XII; e H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae,
ed. 6.ª, Torino 1937, vol. I, p. 450.
[5] “O Povo santo de Deus
participa também da função profética de Cristo, difundindo seu testemunho vivo
sobretudo com a vida de fé e de caridade e oferecendo a Deus o sacrifício de
louvor, que é fruto dos lábios que confessam seu nome. A totalidade dos fiéis,
que têm a unção do Santo, não pode equivocar-se quando crê, e ele manifesta
essa prerrogativa peculiar sua mediante o senso sobrenatural da fé de todo o
povo, quando desde os Bispos até aos últimos fiéis leigos prestam consentimento
universal nas coisas de fé e costumes. Com este senso da fé, que o Espírito de
verdade suscita e mantém, o Povo de Deus adere indefectivelmente à fé confiada
de uma vez por todas aos santos, penetra-a mais profundamente com julgamento
certeiro e dá-lhe mais plena aplicação na vida, guiado em tudo pelo sagrado Magistério, submetendo-se
ao qual já não aceita uma palavra de homens, mas a verdadeira palavra de Deus”
(Lumen Gentium, n. 12; destaque nosso).
[6] Cf. Novo Catecismo
da Igreja Católica, n. 889. – Mas, insista-se, se o conjunto ou
universalidade dos fiéis não pode errar, não é senão porque tão somente é
“guiado” pelo magistério, mas sobretudo e essencialmente porque a Igreja
discente sabe o que é de fé pela voz da Igreja docente (ou seja, do magistério
infalível da Igreja).
[7] Segundo a nova doutrina,
deve-se falar de uma “dupla infalibilidade” porque cada uma tem um princípio
diferente e independente: a infalibilidade da Igreja funda-se na virtude da fé,
enquanto a do magistério se funda nos poderes de ordem e de jurisdição, cuja
raiz última é o caráter sacerdotal. A nova teologia, é claro, não quer
reconhecer o que se acaba de afirmar, porque sabe que a tradição fala de umaúnica infalibilidade,
e por isso tentou unificar, justamente ao modo modernista, tal princípio com a
doutrina do “sacerdócio comum”. Mas, quando se pergunta aos novos teólogos qual
é o princípio ou raiz do sacerdócio comum, a fé ou o caráter batismal, “a
resposta”, como escreve o Padre Álvaro Calderón, “perde-se numa indefinida
multidão de opiniões contraditórias. São as belezas do pluralismo teológico
atual”.
[8] Cf. São Pio X, Encíclica Pascendi,
Dz 2095* (antiga numeração): “Seguindo mais de perto a mente dos modernistas,
diremos que a evolução [do dogma] surge do conflito de duas forças, das quais
uma tende ao progresso, a outra à conservação. A força conservadora reside
com todo o seu vigor na Igreja e é contida na tradição; exerce-a, porém, a
autoridade religiosa, e isso tanto de direito, dado que entra na natureza da
autoridade salvaguardar a tradição, como de fato, pois a autoridade, limitada
pelas mudanças da vida, não se sente nada ou quase nada exigida pelos estímulos
que impelem ao progresso. Vemos aqui, Veneráveis Irmãos, como ergueu a cabeça
uma doutrina perniciosíssima que furtivamente introduz na Igreja os leigos como
elementos de progresso. De uma espécie de convênio e pacto entre essas duas
forças, a conservadora e a progressiva, quer dizer, entre a autoridade e as
consciências individuais, nascem os progressos e as mudanças. Porque as
consciências dos indivíduos, ou algumas delas, agem sobre a consciência
coletiva, e esta sobre os representantes da autoridade, obrigando-os a pactuar
e a ater-se ao pactuado”.
[9] Comissão Teológica
Internacional, “La interpretación de los dogmas”, em Documentos
1969-1996, Madri, BAC, 1998, p. 449.
FONTE: www.estudostomistas.com.br
FONTE: www.estudostomistas.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário