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quarta-feira, 25 de maio de 2016

Da necessidade de resistir ao magistério conciliar (V)



C. N.

2.º O liberalismo do chamado magistério conciliar

As normas e as instituições vaticanas anteriores ao Concílio Vaticano II eram-no de uma Roma que desde o princípio fora mestra da verdade diante do mundo. Por isso mesmo, aliás, é que não se pôde ver nada de muito especial no breve pontificado de João XXIII, papa não só reconhecidamente tendente ao liberalismo: era, além disso, muito otimista com respeito à situação da Igreja no mundo (contrariamente ao sentir detodos os papas anteriores). Mas a natureza mesma de um concílio ecumênico seria ocasião propícia para transformar tudo isso, razão por que os espíritos mais lúcidos desaconselhavam com firmeza sua convocação: seria como abrir as portas a um liberalismo “católico” já muito forte e muito estendido.
Pois bem, a transfiguração liberal da autoridade suprema deu-se já com as decisões tomadas na primeira sessão do concílio.[1] É verdade que Paulo VI fala de sua própria autoridade de maneira antes tradicional; já aexerce, todavia, de modo efetivamente liberal, além de que, conforme os católicos deixavam de assombrar-se com as novas liberdades que iam adquirindo, o magistério conciliar passou a explicar sua natureza de modo mais aberto. Os princípios liberais tinham sido lançados nos documentos conciliares, e muito prontamente começaram a frutificar. Estava apagada a candeia da cátedra romana.
É o momento, porém, de que mostremos as três diferenças distintivas do exercício da autoridade liberal “católica”.
• Antes de tudo, o próprio e novo “caráter pastoral” do concílio. Com efeito, todos os concílios tinham tido caráter pastoral, o que decorre de que sempre se tinham reunido para resolver sérios problemas do âmbito da Igreja. Mas já a convocação do último concílio anuncia seu caráter pastoralcomo algo radicalmente novo. Ora, a diferença entre o antigo caráter pastoral e o novo reside em que para os pastores tradicionais, de São Pedro a Pio XII, o primeiro cuidado pastoral era a definição dogmática que aqueles sérios problemas requeriam, enquanto para os pastores conciliares nada é mais oposto ao caráter pastoral que a definição doutrinal. De fato, todos os documentos do Vaticano II reafirmam seu caráter “pastoral” justamente para justificar a falta de definição doutrinal. Em verdade, este caráter é o caráter de uma pastoral liberal, que padece o falso conflito entre a autoridade e a liberdade (que já mostramos em outra postagem desta série). E esse mesmo sofisma foi o que freou as tentativas de dissolver as ambiguidades sob as quais se escondiam os princípios liberais.[2]
• Depois vem a nova infalibilidade do sensus fidei (senso da fé). Sempre se ensinou (e repete-o Santo Tomás na Suma Teológica) que o conjunto ou universalidade dos fiéis não pode errar ao professar uma verdade como sendo de fé: dizer o contrário vai contra o dogma da indefectibilidade da Igreja. Mas a infalibilidade dos fiéis é consequência da infalibilidade do magistério, o sujeito único[3] do carisma da verdade indefectível.[4] Ora, o magistério conciliar inverte-o: para ele, o sujeito primeiro e imediato da infalibilidade não é a hierarquia, mas “todo o povo de Deus”, como se lê naLumen Gentium, a carta magna ou constituição desta visão liberal. Insista-se: como sempre dissera a doutrina tradicional, só a hierarquia participa propriamente do sacerdócio de Cristo, e só ela tem então a função de ensinar com o carisma da infalibilidade. Mas a Lumen Gentium sustenta que do sacerdócio de Cristo participa primeira e imediatamente toda a Igreja. Assim, todo cristão, pelo simples fato de ser batizado, já é sacerdote segundo o “sacerdócio comum” e coletivo de todo o Povo de Deus; e, dentro do sacerdócio comum, há diferentes serviços, o principal dos quais é o “sacerdócio ministerial” da hierarquia. Portanto, para o neomodernismo, a função docente pertence primeira e imediatamente não à hierarquia, mas a todo o povo de Deus. Deve fazer-se, no entanto, a seguinte precisão: agora já não se trata propriamente de ensinar – com efeito, ensinar a quem, se todos participam de tal função? –, mas de dartestemunho vivendo a fé diante dos incrédulos. Seria, então, uma função “profética” do “sacerdócio comum”, que goza de infalibilidade comum e que tem por princípio o “senso da fé” e por sujeito, repita-se, a Igreja inteira.[5]
Desse modo, o depósito da fé não teria sido confiado somente aos Apóstolos e a seus sucessores, mas aos “santos”, quer dizer, à “totalidade dos fiéis que têm a unção do Santo”; por conseguinte, o Espírito Santo não assistiria somente à hierarquia com os carismas do magistério infalível, mas a todos, suscitando neles o sensus fidei [senso da fé]. Segundo o neomodernismo conciliar, portanto, como escreve o Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, “a hierarquia participa da função profética por duas razões, uma geral enquanto simples membros do Povo de Deus que não carecem do senso da fé – ‘desde os Bispos até o último dos fiéis leigos’ –, e outra, especial, enquanto ministros ordenados que ‘guiam’ o Povo de Deus na tarefa comum de conservar, aprofundar e aplicar a fé. Esta função especial a serviço da função ‘profética’ comum não é de menor importância, porque, enquanto a hierarquia não unificar e autenticar o pensamento comum, este não pode dizer-se ‘verdadeira palavra de Deus’”.[6]
Está subordinada, assim, a função do magistério hierárquico à do sacerdócio comum. Mas o n. 25 da Lumen Gentium faz uma síntese perfeita da doutrina tradicional da infalibilidade do papa e dos bispos. Por que o faz? Para que os padres conciliares que estavam inquietos com as novidades dos primeiros parágrafos pudessem tranquilizar-se. Efetivamente, porém, no novo marco do “sacerdócio comum”, todas as expressões clássicas devem ser reinterpretadas, o que o magistério conciliar seguinte ao concílio não perderá oportunidade de fazer explicitamente.
Em suma, para a doutrina católica o poder de ensinar infalivelmente é comunicado por Cristo primeira e imediatamente ao papa, ainda que os bispos e o conjunto da Igreja também participem dele, mas de modo diverso (os bispos de modo ativo, e o conjunto da Igreja de modo passivo). Para a doutrina liberal conciliar, contudo, a função de expressar a fé com infalibilidade (termos que, como visto, adquirem novo significado nesta mesma doutrina) é comunicada por Cristo primeira e imediatamente a toda a Igreja, enquanto a hierarquia apenas participa dela cumprindo o serviço de unificá-la como mediadora.
• Por fim, esse mesmo novo “serviço da unidade”. É verdade que Hans Küng tirará a conclusão, coerente mas extrema, de que já nem sequer é preciso falar de infalibilidade. Por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé vê-se obrigada a publicar a declaração Mysterium Ecclesiae, de 24 de junho de 1973, onde se assinala a doutrina da Lumen Gentium sobre a dupla infalibilidade, “da Igreja universal” e “do magistério da Igreja”.[7]Mas, como diz ainda o Padre Calderón no mesmo livro, sustentar “que o consentimento dos fiéis em pelo menos uma verdade de fé deve ser reconhecido como infalível por seu mero sensus fidei [senso da fé], de maneira anterior à proposição do magistério, já implica negar que o magistério da Igreja seja a regra próxima e necessária da fé. Segundo a verdade católica, Jesus Cristo comunicou somente aos Apóstolos e seus sucessores a autoridade de seu próprio magistério: ‘Quem vos ouve, a Mim me ouve’ (Luc. 10, 16), e só a eles os enviou a ensinar: ‘Ide e pregai o Evangelho, [...] o que não crer será condenado’ (Mar. 16, 15). Se a profissão de fé da universalidade [ou conjunto] dos fiéis pode ser julgada infalível, é porque pressupõe a sanção anterior, ao menos tácita, do magistério; porque o verdadeiro católico não pode nunca estar certo dos pensamentos surgidos em sua meditação enquanto não os vir confirmados pela autoridade da Igreja. Segundo a mentira liberal, em contrapartida, a comunidade eclesial inteira é inspirada e enviada, de maneira que a verdade evangélica surgiria da meditação comum: se todos creem na mesma coisa, a hierarquia tem o dever de sancioná-la. A certeza de seu consentimento é tomada, então, não da pregação exterior das testemunhas autorizadas [...], mas do senso interior da fé em contato imediato com a Verdade substancial”.
Sucede ainda, no entanto, que a Lumen Gentium diz que ao menos às vezes o magistério pode predispor os fiéis ao consentimento – e até exigi-lo! Seria isso uma concessão à doutrina tradicional? De modo algum. A doutrina modernista ou liberal reconhece que a autoridade tem não só uma função unificadora da interpretação comum da Igreja em cada momento, mas também uma função conservadora, para que a comunidade eclesial não perca sua identidade com o passar do tempo.[8]À autoridade competiria, portanto, fazer valer algumas fórmulas chamadas “dogmas” que expressaram a fé comum em tempos passados, fórmulas já sancionadas outrora pela autoridade. Se pois agora o magistério predispõe ao consentimento e até o pode exigir quando a certos pontos, não é por “autoritarismo”, mas porque, “como comunhão de fé, a Igreja é uma comunhão na palavra da confissão; por isso, cabe à unidade da Igreja tanto diacronicamente [ou seja, ao longo do tempo] como sincronicamente [ou seja, agora, em dado momento] também a unidade nas palavras fundamentais da fé [= dogmas] que não são revisáveis, se não se quer perder de vista a ‘coisa’ expressa nelas”.[9] Para o modernismo liberal, por conseguinte, a sanção da autoridade é sempre posterior e dependente do consentimento da comunidade; enquanto, para a doutrina católica, o consentimento universal é sempre, em última instância, posterior e dependente da sanção – ao menos tácita – do Romano Pontífice. 

     (Continua.)





[1] Cf., por exemplo, The Rhine Flows into the Tiber. A History of Vatican II  [O Reno Lança-se no Tibre…], 1.a ed., Nova York, Hawthorn Books, 1967.
[2] Na primeira sessão do concílio, D. Lefebvre assinalou a necessidade de propor textos dogmáticos em que se formulasse a doutrina de modo preciso. Mas sua proposta, segundo ele mesmo, “foi objeto de violentas oposições: ‘O Concílio não é um concílio dogmático, mas pastoral; não queremos definir novos dogmas, mas expor a verdade pastoralmente’”. Cf. Acuso el Concilio, Buenos Aires, Iction, 1978, p. 25; Fr. Pierre-Marie O.P., “L’autorité du Concile”, in Le Sel de la Terre, n. 35, p. 38-39.
[3]  Vide a noção de sujeito ainda numa postagem anterior desta série.
[4] Cf., por exemplo, Ioan. Bapt. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, ed. 3.ª, Romae 1882, Thesis XII; e H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6.ª, Torino 1937, vol. I, p. 450.
[5] “O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo seu testemunho vivo sobretudo com a vida de fé e de caridade e oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, que é fruto dos lábios que confessam seu nome. A totalidade dos fiéis, que têm a unção do Santo, não pode equivocar-se quando crê, e ele manifesta essa prerrogativa peculiar sua mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando desde os Bispos até aos últimos fiéis leigos prestam consentimento universal nas coisas de fé e costumes. Com este senso da fé, que o Espírito de verdade suscita e mantém, o Povo de Deus adere indefectivelmente à fé confiada de uma vez por todas aos santos, penetra-a mais profundamente com julgamento certeiro e dá-lhe mais plena aplicação na vida, guiado em tudo pelo sagrado Magistério, submetendo-se ao qual já não aceita uma palavra de homens, mas a verdadeira palavra de Deus” (Lumen Gentium, n. 12; destaque nosso).
[6] Cf. Novo Catecismo da Igreja Católica, n. 889. – Mas, insista-se, se o conjunto ou universalidade dos fiéis não pode errar, não é senão porque tão somente é “guiado” pelo magistério, mas sobretudo e essencialmente porque a Igreja discente sabe o que é de fé pela voz da Igreja docente (ou seja, do magistério infalível da Igreja).
[7] Segundo a nova doutrina, deve-se falar de uma “dupla infalibilidade” porque cada uma tem um princípio diferente e independente: a infalibilidade da Igreja funda-se na virtude da fé, enquanto a do magistério se funda nos poderes de ordem e de jurisdição, cuja raiz última é o caráter sacerdotal. A nova teologia, é claro, não quer reconhecer o que se acaba de afirmar, porque sabe que a tradição fala de umaúnica infalibilidade, e por isso tentou unificar, justamente ao modo modernista, tal princípio com a doutrina do “sacerdócio comum”. Mas, quando se pergunta aos novos teólogos qual é o princípio ou raiz do sacerdócio comum, a fé ou o caráter batismal, “a resposta”, como escreve o Padre Álvaro Calderón, “perde-se numa indefinida multidão de opiniões contraditórias. São as belezas do pluralismo teológico atual”.
[8] Cf. São Pio X, Encíclica Pascendi, Dz 2095* (antiga numeração): “Seguindo mais de perto a mente dos modernistas, diremos que a evolução [do dogma] surge do conflito de duas forças, das quais uma tende ao progresso, a outra à conservação. A força conservadora reside com todo o seu vigor na Igreja e é contida na tradição; exerce-a, porém, a autoridade religiosa, e isso tanto de direito, dado que entra na natureza da autoridade salvaguardar a tradição, como de fato, pois a autoridade, limitada pelas mudanças da vida, não se sente nada ou quase nada exigida pelos estímulos que impelem ao progresso. Vemos aqui, Veneráveis Irmãos, como ergueu a cabeça uma doutrina perniciosíssima que furtivamente introduz na Igreja os leigos como elementos de progresso. De uma espécie de convênio e pacto entre essas duas forças, a conservadora e a progressiva, quer dizer, entre a autoridade e as consciências individuais, nascem os progressos e as mudanças. Porque as consciências dos indivíduos, ou algumas delas, agem sobre a consciência coletiva, e esta sobre os representantes da autoridade, obrigando-os a pactuar e a ater-se ao pactuado”.

[9] Comissão Teológica Internacional, “La interpretación de los dogmas”, em Documentos 1969-1996, Madri, BAC, 1998, p. 449.

FONTE: www.estudostomistas.com.br

Da necessidade de resistir ao magistério conciliar (IV)



Carlos Nougué

Artigo Primeiro

Se o chamado magistério conciliar é infalível (3)


O magistério[1] conciliar não quis usar da infalibilidade
ao modo extraordinário

Diferentemente de qualquer outro concílio ecumênico, o Concílio Vaticano II manifestou desde o início a intenção de não definir novos dogmas, ou seja, de não tratar infalivelmente doutrina sobre a fé e os costumes.[2]
Segundo esse mesmo espírito, os papas pós-conciliares (que também se chamam conciliares) nunca quiseram recorrer ao exercício supremo de sua autoridade. O único ato de magistério pós-conciliar que pareceu alcançar a solenidade de uma definição ex cathedra foi a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis, de João Paulo II, sobre a impossibilidade da ordenação sacerdotal de mulheres. Leia-se a conclusão do documento: “Com o fim de afastar qualquer dúvida acerca de uma questão de grande importância, que diz respeito à própria constituição divina da Igreja, em virtude de meu ministério de confirmar na fé os irmãos, declaro que a Igreja não tem de modo algum a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que este ditame deve ser considerado como definitivo por todos os fiéis da Igreja”. Sucede porém que o então Cardeal Ratzinger, traduzindo a intenção de João Paulo II (e com a autorização deste, naturalmente), logo diria a respeito desta carta: “Trata-se de um ato do magistério autêntico ordinário do Sumo Pontífice, e portanto de um ato não definitório nem solene ex cathedra, ainda que o objeto deste ato seja a declaração de uma doutrina ensinada como definitiva, e por conseguinte não reformável”.[3]Não deixa de assombrar: o ato não é definitivo, mas o objeto, sim... (relembrem-se as noções dadas nas postagens anteriores). Este modo de exercício do magistério pontifício é inédito, e transforma e embaralha radicalmente o sentido de “extraordinário”. Tente-se entender: João Paulo II quer pôr fim às disputas com relação à ordenação de mulheres, mas quer fazê-lo sem dar à sua própria declaração o caráter de definição ex cathedraUm ato não infalível com objeto infalível!... Ora, se acontecem disputas com respeito a verdades afirmadas por magistério ordinário universal, é por não terem sido ensinadas em um único ato que não deixasse dúvidas quanto à sua autoridade. Por isso, os pontífices punham fim a essas dúvidas mediante uma definição ex cathedra, que obriga por si mesma. Mas agora João Paulo II julga melhor não valer-se do peso de sua própria autoridade.[4]
Devemos perguntar-nos agora, portanto, por que o magistério conciliar se empenha em evitar expressar-se infalivelmente de modo extraordinário.

As autoridades conciliares agem assim
porque adotaram uma atitude liberal

1.º A autoridade da Igreja segundo o liberalismo

A verdade torna o homem livre (Jo. 8, 32), e por isso o homem reto considera sumamente importante encontrar um mestre de grande autoridade que lhe revele o valor das coisas com respeito às quais deve exercer seu livre-arbítrio. Mas para a mentalidade liberal, radicalmente corrupta, a relação entre liberdade e autoridade é um verdadeiro conflito. Para o liberalismo, com efeito, a liberdade individual é o valor pessoal supremo; e, consequentemente, de todas as liberdades pessoais, a mais excelente é a liberdade de pensamento. Por isso, se uma autoridade impõe sua doutrina sem deixar a menor possibilidade de divergência, isso parecerá aos liberais uma opressão do espírito. Seria de pensar, portanto, que para os liberais – como para os anarquistas – não deveria haver nenhuma autoridade. Mas não é bem assim. Se o homem fosse um animal solitário e não social ou político, não haveria o referido conflito; mas, como vive em sociedade, dá-se o problema de conjugar as liberdades individuais com as exigências da pólis ou comunidade. Por isso, para o “católico” liberal,[5] temos necessidade de certa autoridade. Para ele, o católico medieval, renunciou à liberdade de pensamento e entregou ao magistério da Igreja o poder absoluto de ensinar: a autoridade suprimiria assim a liberdade. O liberal protestante sacudiu totalmente o jugo desse autoritarismo doutrinal, passando a relação com Deus a ser puramente individual: aqui, a liberdade suprime a autoridade. Mas não é difícil constatar que as comunidades protestantes se dividem ao infinito, justo porque carecem de unidade doutrinal mínima. É por isso que o liberal “católico” sabe que não se pode evitar totalmente o conflito entre liberdade e autoridade, e que portanto é preciso tolerar certo exercício de autoridade doutrinal.
Para melhor entendê-lo, assinalem-se três diferenças entre a maneira tradicional de entender a autoridade na Igreja e o modo liberal.
• Primeira, quanto à liberdade. Para o católico tradicional (perdoe-se a redundância), a autoridade aperfeiçoa a liberdade, porque permite ao homem escolher com certeza o que mais lhe convém. Por isso é que o católico celebra cada definição do magistério da Igreja como um novo terreno ganho para o uso seguro de sua liberdade. Para o liberal, todavia, a autoridade restringe a liberdade, razão por que, embora tenha de reconhecer que a autoridade é necessária para manter a unidade, lamenta como uma perda ou derrota cada definição do magistério da Igreja – e quer que o exercício deste se reduza ao mínimo possível.
• Segunda, quanto a seu princípio. Para o católico tradicional, o magistério da Igreja é a regra próxima da fé com respeito a todos os cristãos, porque só a ele lhe foi prometida a assistência do Espírito Santo para que conservasse integralmente e propusesse indefectivelmente o depósito da fé.[6] Para o liberal, em contrapartida, o sentir comum dos fiéis é que é a regra próxima do magistério, porque a assistência do Espírito Santo teria sido prometida em primeiro lugar à comunidade dos fiéis para viver em cada época o Evangelho, e só em segundo lugar ao magistério, mas tão somente para compreender, expressar e autorizar o que o Espírito diz ao conjunto dos fiéis. Como escreve o Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, “não seriam os fiéis os que devem ler as atas do magistério, mas o Magistério o que deve ler o coração dos fiéis”.
• Terceira, quanto à sua finalidade. Para o católico tradicional, o magistério está para os fiéis assim como o professor está para as crianças: tem um ofício eminente que se ordena a ensinar com certeza. Para o liberal, no entanto, o magistério está para a comunidade eclesial assim como o moderador está para uma mesa de debate: tem um ofíciodependente que se ordena a unificar pareceres. 





[1] Como já se há de ter notado, a palavra magistério refere-se tanto aos atos doutrinais dos papas e dos bispos como aos mesmos papas e bispos. Assim, magistério conciliar significa tantos o conjunto de atos doutrinais dos papas que seguem o Concílio Vaticano como estes mesmos papas; etc.
[2] Com efeito, disse Paulo VI: o Concílio Vaticano II “evitou promulgar definições dogmáticas solenes que comprometessem a infalibilidade do magistério eclesiástico” (Audiência de 12 de janeiro de 1966,Documentation catholique, 1966, n. 1466, col. 418-420).
[3] L’Osservatore Romano em língua espanhola, 10 de junho de 1994, p. 8, col. 1.
[4] Aliás, o próprio João Paulo II, num discurso à assembleia plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, assimilou o modo de exercer a autoridade na Ordinatio sacerdotalis ao de suas cartas encíclicas doutrinais, que certamente não contêm definições ex cathedra. – Mas há que saber ainda se a Ordinatio sacerdotalis é de algum modo infalível. É o que se verá mais adiante nesta série.
[5] O “católico” liberal só faz parte da Igreja ao modo como um tumor maligno se diz daquele que o porta. Daí as aspas.
[6] Como se voltará a ver, e então detidamente, a assistência do Espírito Santo dá-se de algum modo ou quando estão presentes, propriamente ou analogamente, as já vistas quatro condições vaticanas, ou quando se trata de doutrina certa – ou seja, tudo o que o magistério conciliar evita, justo porque, em vez de impor sua autoridade, ele a depõe.   

FONTE: www.estudostomistas.com.br

Da necessidade de resistir ao magistério conciliar (III)



Carlos Nougué

Artigo Primeiro

Se o chamado magistério conciliar é infalível (2)


Os dois modos do magistério infalível

Deve-se proceder agora a uma divisão formal no modo infalível dos atos de magistério. Pois bem, para ser correta, qualquer divisão formal deve cumprir dois requisitos:
• antes de tudo, dividir a essência por diferenças contrárias naquilo que tem de mais próprio e específico;
• depois, abarcar todo e qualquer indivíduo dessa essência ou natureza, de maneira que pertença a um ou a outro membro da divisão.
Explique-se.
a. O caráter de infalibilidade do ato de magistério visa a terminar com a hesitação do espírito diante da possibilidade de erro de um ensinamento não infalível: com efeito, quando se ensina com certeza, elimina-se o receio com que se fica ao concordar com algo ensinado como opinião.
b. Mas tal fim não é alcançado perfeitamente enquanto o ensinado não se fixar em uma única sentença claramente infalível. Com efeito, enquanto o ensinado se transmitir mediante expressões diversas ou em contextos diferentes, sempre permanecerá a dúvida quanto a qual expressão seja a mais correta ou quanto a como deve ser interpretada.
c. Assim, dos modos como o magistério da Igreja pode ensinar com infalibilidade, deve considerar-se principal aquele que proponha a verdade em uma sentença única e garanta assim, isoladamente, a infalibilidade. Com efeito, quando para reconhecer o caráter de infalibilidade for preciso relacionar uma série de atos de magistério em que a mesma verdade se expressa mediante palavras diferentes ou em contextos diferentes, não se alcança então com a mesma perfeição o que se busca.
◊ Ao primeiro e principal modo, chamamos magistério infalível extraordinário. Diz-se extraordinário porque este ato de magistério deve dar-se com grande solenidade, a fim de deixar patente sua condição de infalível por si mesmo.
◊ O segundo modo, em contrapartida, justamente porque pode dar-se de muitas e muito diferentes maneiras, diz-se magistério infalível ordinário.
Observação importante. Não se confunda a distinção entre magistérioinfalível e magistério não infalível (como explicado no item a acima) com a distinção entre magistério infalível extraordinário e magistério infalívelordinário (tal como explicado no item b e no item c acima). Na primeira distinção, com efeito, “infalível” e “não infalível” são diferenças demagistério, enquanto na segunda “ordinário” e “extraordinário” são diferenças de infalível (ou seja, não de magistério). Insista-se, portanto, em que na segunda distinção se trata de magistério infalível com infalibilidade ao modo extraordinário ou de magistério infalível com infalibilidade ao modo ordinário.[1] Tratemo-la mais detidamente.

1.º Magistério infalível extraordinário

O magistério infalível extraordinário pode ser exercido tanto pelo papa sozinho como pelo papa e pelos bispos conjuntamente.
• Pois bem, é doutrina católica definida (pela constituição Pastor aeternus, do Concílio Vaticano I) que as condições necessárias e suficientes para que um ato de magistério papal seja infalível por si mesmo, ou seja, isoladamente, são quatro: “O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra – isto é, / (1.ª) quando cumprindo seu cargo de pastor e doutor de todos os cristãos, define por sua suprema autoridade apostólicaque / (2.ª) uma doutrina sobre a fé e costumes / (4.ª) deve ser sustentada/ (3.ª) pela Igreja universal –, pela assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela infalibilidade de que o Redentor divino quis que fosse provida sua Igreja na definição da doutrina sobre a fé e os costumes”.  
• Mas a doutrina sobre as condições de infalibilidade do magistério extraordinário do Papa e dos bispos conjuntamente, ou seja, reunidos em concílio, não alcançou o mesmo grau de definição. Ainda assim, porém, é possível deduzi-las mediante um simples raciocínio teológico.
◊ As referidas quatro condições vaticanas foram estabelecidas segundo a natureza do exercício magisterial do papa (vide o artigo anterior desta série): com efeito, quanto ao sujeito, requer-se a suprema autoridade; quanto ao duplo objeto, matéria (fé e costumes) e ouvintes; exige-se que o papa se dirija à Igreja universal; e que se pronuncie com intenção de impor.
◊ Pois bem, quando o colégio episcopal se reúne sob o papa – ou seja, sob sua cabeça –, exerce com este um magistério da mesma natureza que o do papa sozinho: porque goza da mesma infalibilidade que as definições ex cathedra do Romano Pontífice. Logo, mutatis mutandis as condições de infalibilidade do magistério conjunto do papa e dos bispos são as mesmasquatro condições do magistério papal.[2]
Observação 1. Quanto ao sujeito (vide ainda o artigo anterior desta série), normalmente o Papa e os bispos ensinam infalivelmente e extraordinariamente quando reunidos em concílio. Em outras palavras, é nos concílios que se exerce efetivamente seu magistério infalível extraordinário. Mas que haja reunião local é exigência puramente material. Se atualmente, com os modernos meios de comunicação, o papa definisse um dogma com os bispos em suas respectivas dioceses, exercer-se-ia um magistério infalível extraordinário.[3]
Observação 2. Quanto à intenção, assinale-se que deve ser julgadamore humano (ou seja, ao modo humano). Quando o magistério da Igreja propõe verdades à maneira de símbolo de fé como no Credo dos Apóstolos, ou cânones como no Concílio de Trento, ou ainda uma coleção de sentenças como no Syllabus de Pio IX, cada uma de tais proposições é infalível porque se cumprem as quatro condições vaticanas. Quando porém não se cumprem as quatro condições vaticanas, trata-se de proposiçõesmere (meramente) autênticas. Com efeito, quando num documento magisterial, em torno das proposições infalíveis centrais, há outras que são expostas à maneira de discurso científico, ou seja, explicando e argumentando, deve dizer-se que neste mesmo documento só são infalíveis as proposições centrais.[4]

2.º Magistério infalível ordinário

• O magistério infalível ordinário pode exercer-se, como dito, de maneira muito diferente. Qualquer que seja tal maneira, porém, para que seja de fato infalível, devem cumprir-se “equivalentemente” ou analogamente as mesmas quatro condições vaticanas, o que nem sempre é dito pelos que tratam deste assunto.
◊ Por exemplo, se todos os bispos ensinaram juntamente com o papa uma mesma sentença, mas não o fizeram como pastores de suas respectivas dioceses, e sim como doutores privados (contra a 1.ª condição vaticana), tal sentença não seria infalível por magistério ordinário universal. Diga-se aliás que, se outros doutores, de maior autoridade, ensinaram o contrário do que ensina tal sentença, o mais provável é que os bispos tenham errado.
◊ Se todavia ensinam em matéria não relativa à fé e aos costumes (contra a 2.ª condição vaticana), tampouco há infalibilidade.
◊ Se a sentença é dirigida por um bispo a determinada pessoa em particular, e por outro a outra pessoa (contra a 3.ª condição vaticana), ainda não há infalibilidade: justamente porque tal sentença não se dirige à Igreja universal.
◊ Se o conjunto dos bispos em comunhão com o papa ensina, por exemplo, que é opinião piedosa que as almas do purgatório intercedem por nós (contra a 4.ª condição vaticana), nem por isso essa sentença passa a ser verdade de fé: justamente porque não se tem aqui intenção de imporesta doutrina como de fé ou em vinculação com a fé. Poderia até ser um erro, mas um erro que não atenta contra a piedade.[5]
• Quanto à infalibilidade ao modo ordinário do papa, deve assinalar-se ainda que, na própria diversidade de maneiras em que pode dar-se, uma característica é comum a todas: dá-se sempre por repetição de atos. Assim, se basta um ato único e isolado para que o ensinamento seja infalível, ele pertence ao magistério infalível extraordinário. O modo ordinário do magistério infalível do Romano Pontífice exige uma série de atos com relação à mesma doutrina. Assim, se todos ou muitos papas ensinaram uma doutrina certos de que é revelada, não podem ter-se equivocado. Se todos os papas seguintes a determinado erro o condenaram, não podem ter errado. Se um mesmo papa propõe e repropõe certa verdade ou princípio, ainda que em cada contexto não a tenha querido afirmar como sentença principal, pode reconhecer-se aí uma intenção de impô-la como definitiva, o que a tornaria infalível ao modo ordinário.[6]
 Quanto à infalibilidade ao modo ordinário do magistério do papa e dos bispos conjuntamente, devemos considerar duas dimensões: a do tempo e a do espaço. Às vezes, podem cumprir-se as condições da infalibilidade por repetição de atos no tempo; às vezes, por complementação de atos no espaço; às vezes, por uma combinação dos dois aspectos. Assim, se desde sempre em alguma diocese determinadas proposições se conservaram como reveladas, e em dado momento foram reconhecidas como tais por um papa, e, ademais, ninguém nunca se opôs a elas, são infalivelmente verdadeiras (tem-se então universalidade temporal). Se, porém, diante de uma novidade, todos os bispos em conjunto com o papa a consideram falsa, não podem errar (tem-se entãouniversalidade local). Se, por fim, uma verdade é afirmada aqui e depois ali, e passa o tempo suficiente para que o papa e as demais dioceses a fiquem sabendo, e ninguém afirma o contrário, também se dá infalibilidade por magistério ordinário; e, neste caso, o tempo supre o que falta à universalidade local (tem-se então universalidade combinada temporal e local).
Observação. Como decorre do dito, o magistério infalível ordinário do papa e dos bispos chama-se magistério ordinário universal.

Conclusões

a. O magistério infalível pode ser exercido de dois modos: de modo extraordinário e de modo ordinário.
b. O magistério infalível extraordinário é exercido pelo papa tão somente quando define ex cathedra, e pelo papa e pelos bispos reunidos em concílio quando definem com solenidade.
c. O magistério infalível do papa ao modo ordinário dá-se por repetição de atos, e no papa em conjunto com os bispos quando é universal.






[1] É grande, todavia, a complexidade deste assunto. Para dar um só exemplo, assinale-se que na bulaIneffabilis Deus somente a sentença dogmática quanto à Imaculada Conceição é infalível ao modo extraordinário. Voltaremos a tratar tal complexidade.
[2] Assinale-se apenas que não lhe convém a denominação ex cathedra, ou seja, da cadeira de São Pedro. Mais conveniente é, portanto, a denominação ex aula, ou seja, do recinto do concílio reunido sob o papa.
[3] Esta possibilidade, todavia, apresenta graves problemas teológicos, em especial pela dificuldade que o papa teria para comprovar a participação real e direta dos bispos. Mas não é preciso que o aprofundemos aqui.
[4] Às vezes o papa deixa expresso no texto aquilo a que se dirige plenamente sua intenção, como na bula Ineffabilis Deus (sobre a Imaculada Conceição), mas às vezes não o faz. Neste caso, pode ser difícil determinar a que se dirige plenamente sua intenção, e então se deve considerar não só o texto, mas todas as circunstâncias que constituem o contexto.
[5] “Não é estranho”, escreve o Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, “que os problemas novos que se apresentam ao teólogo não possam ser resolvidos com a aplicação direta de princípios teológicos já estabelecidos e aceitos; e exijam dele que desenvolva mais a doutrina implícita do magistério para encontrar a solução. Isso é o que cremos estar fazendo: para solucionar o problema do magistério conciliar, é preciso levar em consideração que as quatro condições que o Vaticano I determinou para o magistério infalível do papa devem estender-se proporcionalmente ao magistério infalível do papa e dos bispos, seja extraordinário, seja ordinário universal. Como todavia não é um princípio teológico universalmente reconhecido, nossa questão continua a ser uma quaestio disputata; mas observe-se que é conclusão imediata de princípios doutrinais muito firmes.”
[6] São Pio X, por exemplo, nunca declarou que fosse dogma de fé a restauração de todas as coisas em Cristo. Por tomá-lo, todavia, como princípio de todos os seus atos de governo, devemos considerar este princípio como infalivelmente verdadeiro.

FONTE: www.estudostomistas.com.br

Da necessidade de resistir ao magistério conciliar (II)



Carlos Nougué

Artigo Primeiro

Se o chamado magistério conciliar é infalível (1)[1]

O magistério conciliar, ou seja, o do Concílio Vaticano II e dos papas posteriores, definitivamente não goza do carisma da infalibilidade. Com efeito, há dois modos de exercer o carisma da infalibilidade: um é extraordinário, enquanto o outro é ordinário e universalcomo se verá pouco adiante. Conquistadas porém pelo liberalismo, as autoridades conciliares[2] não quiseram ensinar com infalibilidade segundo o modo extraordinário; e pelo mesmo motivo seu magistério ordinário não alcança o grau de universal. Desse modo, o magistério conciliar não é infalível nem poderá vir a sê-lo de maneira alguma, e isso é assim justamente porque as autoridades eclesiásticas se mantêm em seu liberalismo.[3] Explique-se.

O que se acaba de dizer pressupõe a doutrina segundo a qual há tão somente dois modos de o magistério da Igreja ser infalível. Afirmaram-se, ademais, três coisas que decorrem de algum modo da mesma doutrina. Com efeito, segundo uma ordem de evidência, a primeira dessas coisas é o fato manifesto de que as autoridades conciliares não desejaram nem desejam ensinar segundo o modo extraordinário do magistério da Igreja; a segunda, que resulta dessa mesma atitude, é sua mentalidade liberal; a terceira, que resulta do mesmo, é que seu magistério ordinário nunca poderá vir a ser universal. A conclusão, necessária, não só afirma o simples fato de que não houve infalibilidade no Concílio Vaticano II, mas assinala ainda que não pode havê-la de modo algum (ou seja, nem infalibilidade extraordinária nem infalibilidade ordinária universal) enquanto os papas conciliares não renunciarem à mentalidade liberal. Antes porém de demonstrá-lo, é preciso insistir nas noções centrais da doutrina referida mais acima.

Acerca do magistério da Igreja[4]

Nosso Senhor Jesus Cristo transmitiu à Igreja o poder de ensinar em seu nome e fundada em sua autoridade: “Ide e ensinai, porque quem vos ouve, a mim me ouve”. E é a este mesmo poder comunicado por Cristo que chamamos magistério da Igreja. É um dom único e permanente, que durará indefectivelmente até ao fim dos tempos (quer dizer, até à Parusia ou segunda e definitiva vinda de Cristo). Mas devemos conhecer, com respeito a ele, o sujeito que participa dele ou a quem é transmitido, o objeto que o especifica e os atos em que é exercido.

• O sujeito do magistério eclesiástico

O sujeito do magistério eclesiástico são chamados órgãos ou instrumentos; e são chamados assim porque, falando propriamente, o poder ou autoridade só o mesmo Cristo a tem. Cristo é o mestre principal, e qualquer outro possui tal autoridade apenas como instrumento de Cristo.
Mas, se consideramos o sujeito do magistério eclesiástico quanto à maneira de participar da autoridade, é preciso distinguir os órgãos em autênticos e subsidiários. Os órgãos autênticos participam da autoridade de Cristo de maneira habitual e própria, enquanto os órgãos subsidiários o fazem de maneira transeunte (ou transitória) e delegada. Só os órgãos autênticos podem dizer-se propriamente “mestres” na Igreja.[5]
As pessoas que constituem os órgãos autênticos são o papa e os bispos. Mas o papa detém a autoridade magisterial de modo pleno, enquanto os bispos a detêm de modo não pleno. Se no entanto se consideram tais pessoas com relação a seus atos magisteriais, devem distinguir-se quatro sujeitos:
◊ o papa sozinho;[6]
◊ o papa com os bispos reunidos em concílio;
◊ os bispos dispersos mas em comunhão com o papa;
◊ os bispos sozinhos.
Com respeito aos órgãos subsidiários, devem distinguir-se os papais dos episcopais, ou seja, os sujeitos ao papa e os sujeito aos bispos. Os que recebem delegação imediatamente do papa (congregações romanas, comissões pontifícias, delegados apostólicos, etc.) participam mais plenamente do magistério eclesiástico que os que a recebem dos bispos (padres párocos, conselhos de presbíteros, comissões diocesanas, etc.). Devem distinguir-se ainda segundo a condição das pessoas, isto é, se se trata de simples fiéis (peritos em diversas ciências ou artes), ou se se trata de pessoas qualificadas por qualquer tipo de autoridade cristã (teólogos, catequistas, chefes de família).

• O objeto do magistério eclesiástico[7]

Como o ensina Santo Tomás,[8] o objeto do magistério da Igreja é duplo, ou seja, são dois.
primeiro é aquilo de que trata seu ensinamento, a saber, a matéria ou doutrina de fé e de costumes. Mas este mesmo primeiro objeto se divide duplamente. Chama-se objeto primário se se trata das verdades reveladas por Deus explicitamente ou implicitamente, e que foram transmitidas ou pelas Escrituras ou pela tradição. Chama-se objeto secundário se se estende “a todas as coisas que, ainda que não tenham sido explicitamente nem implicitamente reveladas, a juízo da mesma autoridade estejam, no entanto, vinculadas de tal maneira ao revelado, que sejam necessárias para custodiar integramente, explicar cabalmente e proteger eficazmente o depósito da fé”.[9] Particularmente, é parte deste objeto secundário declarar e explicar a lei natural, porque é assumida pela lei divina; e julgar todos os fenômenos religiosos (a santidade dos membros da Igreja, as aparições, as manifestações diabólicas, etc.) que se relacionem com a doutrina revelada.
segundo objeto do magistério são aqueles a quem se dirige seu ensinamento. Aqui o que mais importa é se o ato de magistério se dirige à Igreja universal ou a alguma parte dela (uma diocese, um instituto religioso, uma pessoa).

• Os atos em que se exerce o magistério

Quanto a isto, é preciso fazer antes de tudo uma dupla distinção.
◊ Em primeiro lugar, há que distinguir os atos de magistério autêntico dos atos de magistério pessoal. Uma mesma pessoa, ou seja, o bispo ou o papa, pode ser dotada de dupla autoridade magisterial: uma pessoal, em razão da perfeição com que possua a ciência teológica (como era o caso, por exemplo, de São Gregório Magno ou de Pio XII); outra, comunicada por Cristo, em razão do mandato ou missão recebida: os bispos com relação à sua diocese, o papa como bispo de Roma com relação à sua diocese e como pastor supremo com relação à Igreja universal. Se, portanto, o papa ou o bispo ensinam em virtude de sua ciência teológica, temos um ato de magistério pessoal, ato que se deve julgar como se julga o ensinamento de qualquer teólogo. Se, porém, ensina em virtude do mandato recebido de Cristo, temos um ato de magistério autêntico,[10] ato que deve julgar-se à luz da doutrina sobre o magistério da Igreja.
◊ Além disso, em razão de sua certeza, os atos de magistério autêntico dividem-se em infalíveis e mere (‘meramente’) autênticos. Nos atos de magistério infalível, não pode haver o menor erro, porque são plenamente assistidos pelo Espírito Santo. Se fazem parte do referido objeto primário, devem ser cridos com fé divina; se fazem parte do objeto secundário, devem ser cridos com igual certeza, uma vez que, como dito mais acima, têm vinculação necessária com a doutrina revelada. Mas os atos de magistério mere autêntico, ainda que não assegurados pela infalibilidade, também gozam – em grau diverso – da assistência do Espírito Santo, e portanto exigem “religiosa obediência do intelecto e da vontade”.[11] O grau de autoridade com que os atos de magistério mere autêntico se impõem aos fiéis “resulta principalmente da índole dos documentos, ou da frequente proposição da mesma doutrina, ou do modo de dizê-lo”.[12] Tudo isso deve julgar-se more humano, quer dizer, de modo análogo a como os homens costumam julgar o dito pelos doutores em ciências humanas.[13]
Há porém outras qualificações e distinções dos atos de magistério que nem sempre têm significado preciso.
◊ A definição ex cathedra (‘da cátedra, da cadeira, da sede’) do Romano Pontífice tem sentido perfeitamente precisado pelo Concílio Vaticano I; mas às vezes éindevidamente identificada com o magistério infalível do papa, porque, com efeito, como se verá mais adiante, também podem ser infalíveis ensinamentos não dados à maneira de definição ex cathedra. Além disso, provoca-se confusão quando se toma a expressão ex cathedra fora do contexto da declaração vaticana, porque então pode significar todo o magistério autêntico do papa, infalível ou mere autêntico, dado “da cátedra de São Pedro”, quer dizer, como pastor supremo da Igreja universal. – O significado da expressão ex cathedra também se estende às vezes, por analogia, às definições infalíveis dos concílios ecumênicos, as quais, como também se verá mais adiante, têm as mesmas notas ou qualidades das definições papais.
◊ A distinção entre magistério ordinário magistério extraordinário também é fonte de confusões, e confusões ainda maiores, porque, com efeito, um ato de magistério pode deixar de ser comum ou ordinário de diversa maneira. Geralmente, assinala-se o caráter extraordinário ou solene de um ato de magistério como indicativo de compromisso maior da autoridade magisterial; daí que mais frequentemente ou mais claramente seja ao magistério extraordinário que se dá a nota de infalível. Isso todavia dá ensejo a que se cometa um erro: o de identificar, irrefletidamente, a distinção entre extraordinário e ordinário com a distinção entreinfalível e mere autêntico. Com efeito, trata-se de erro porque nem todo o magistério extraordinário ou solene é infalível, assim como nem todo o magistério dado de modo ordinário é não infalível.[14] – Convém, ademais, notar que o magistério extraordinário por excelência é o dos concílios ecumênicos, uma vez que eles constituem um modo efetivamente fora do comum de exercer a autoridade, e só se reúnem por motivos graves ou sérios. – Quando, por outro lado, tal distinção se aplica ao magistério do Romano Pontífice, carece da mesma precisão. Com efeito, os atos do papa revestem-se de solenidade de modo tão variado, que muitas vezes é impossível decidir se são extraordinários ou ordinários. Neste caso, é frequente reduzir a significação de “extraordinário” ao magistério infalível ex cathedra do papa, o que, como dito e como se voltará a ver, não é isento de imprecisão. 





[1] Relembre-se que os mesmos cinco artigos desta série se subdividirão, em prol da facilidade. – Insista-se, ademais, em que a exposição destes artigos não se fará em ordem estritamente científica (ou seja, das objeções para a resposta e para a respectiva solução daquelas), mas em ordem antes e ainda facilitadora (ou seja, da resposta para as objeções e sua respectiva solução). Mas facilitação não implica que o assunto seja de si fácil, e, com efeito, o assunto tratado nesta série sempre exigirá esforço do leitor. Tal esforço, porém, é condição para uma mais perfeita compreensão da crise instaurada pelo Concílio Vaticano II.  
[2] Ou seja, tanto as autoridades do Concílio como as que o seguem.
[3] Como se vê, está suposto aqui que os papas conciliares são papas de algum modo. Que modo seja esse é o que se dirá no livro Do Papa Herético.
[4] Cf. esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II.
[5] Insista-se, todavia, em que mestre propriamente dito não é senão Nosso Senhor Jesus Cristo.
[6] É no papa que reside a suprema autoridade apostólica.
[7] Para que se entenda o termo técnico objeto, veja-se como se aplica à linguagem. Com efeito, a linguagem tem dois objetos: um, as concepções mentais significadas pelas palavras; outro, o destinatário da linguagem, ou seja, aquele que ouve ou lê as palavras.
[8] Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 181, a. 3.
[9] Cf. esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II.
[10] Autêntico vem de authenticus, palavra latina que tem a mesma raiz grega que auctoritas(‘autoridade’).
[11] Cf. esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II.
[12] Idem.
[13] Ou seja, as ciências alcançáveis pelas próprias luzes da razão humana (as éticas, as naturais, as matemáticas, a metafísica).
[14] Naturalmente, tudo isto voltará a tratar-se nesta série.


FONTE: www.estudostomistas.com.br