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sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Sedevacantismo, ilegitimidade do Concílio Vaticano II

Sedevacantismo, ilegitimidade do Concílio Vaticano II e atitude católica diante do magistério

(Trechos de A Candeia Debaixo do Alqueire   Questão Disputada sobre a Autoridade Doutrinal do Magistério Eclesiástico a partir do Concílio Vaticano II, livro do Padre Álvaro Calderón [FSSPX], Rio de Janeiro, Edições Mosteiro da Santa Cruz/Sétimo Selo, 2009, 344 pp.)

«A) Com respeito às teses “sedevacantistas”
 Nem os “sedevacantistas” estritos nem os mitigados (vacância formal, mas não material) podem – nem sequer pretendem – demonstrar que Mons. Roncalli ou Mons. Montini não eram ou deixaram de ser formalmente Papas de maneiranotória antecedente às declarações conciliares. Mesmo concedendo que tivessem uma intenção habitual e objetiva contrária ao bem comum da Igreja que fosse equivalente a uma apostasia: enquanto não for notória, não os impede de exercer a suprema autoridade pontifícia. Se nessas condições exercem o magistério de modo infalível, pela assistência do Espírito Santo o que ensinam será verdadeiro, e todo e qualquer católico deverá aceitá-lo.
Não é lícito de maneira alguma o argumento para trás (quia): “As declarações conciliares deveriam ser infalíveis e são notoriamente falsas; portanto, o Papa carece de autoridade”. Tal discernimento é válido para o magistério interior do Espírito Santo, que também é infalível: “Se o que parece iluminação da graça for contra a fé ou os bons costumes, certamente não é assistido por Deus”. Mas o magistério da Igreja não é interior e invisível, e sim exterior e manifesto. Se aos olhos de todos fala a autoridade suprema da Igreja, e o modo manifesto como se expressa implica infalibilidade, o que diz é verdadeiro ou falham as promessas de Jesus Cristo. Julgar a retidão doutrinal de uma sentença é muitas vezes difícil mesmo para o bom teólogo, e por isso para as verdades fundamentais Nosso Senhor nos deixou somente o trabalho de discernir qual é a autoridade e quando nos obriga a crer no que ela ensina, prometendo assistir sua Igreja para que nisto não tivesse nunca possibilidade de engano.

Ademais, ao recorrer-se ao que os grandes teólogos escolásticos disseram acerca da possibilidade de um Papa herege ou cismático e as conseqüências com respeito à posse do pontificado supremo, não se pode deixar de lado o pressuposto inicial de todos eles: tratam o Papa como pessoa privada e não como doutor da Igreja. Pois bem, o problema do novo magistério nasce justamente nos documentos de um concílio ecumênico! Caetano, Suárez e Bellarmino erguer-se-iam indignados contra o uso de suas pesquisas neste campo. Com que direito se assimila o magistério do órgão supremo da Igreja ao magistério de doutores privados? Sim, também nós assimilamos a autoridade do magistério conciliar à do magistério pessoal de um teólogo – de um mau teólogo ainda por cima –, como o mostraremos nos artigos seguintes, mas o quid da questão está em explicá-lo sem minimizar a autoridade do magistério tradicional.
Só depois de mostrar qual foi o mecanismo que deixou o ensinamento de todo um Concílio sem a assistência do Espírito Santo, só então se poderia discutir se os Papas conciliares perderam a suprema autoridade em conseqüência daqueles atos manifestamente contrários ao bem comum da Igreja. Para ser possível afirmá-lo, teriam de implicar uma heresia, apostasia ou cisma notórios. Mas, ainda que o modernismo liberal seja em sua essência a pior das heresias, a sincera e perseverante vontade que teve durante os últimos séculos de conciliar o pensamento moderno com a fé tradicional o levou a engendrar uma confusão tal, que hoje nos seminários e colégios católicos convivem lado a lado do teólogo mais herético ao mais ortodoxo, passando por todos os graus intermediários. Se se quer penetrar a doutrina profunda do Novus Ordo Missae, aparece um pensamento totalmente heterodoxo, mas não deixa de oferecer pretextos para que muitos teólogos expliquem tudo de modo católico. O ecumenismo do Papa não parece distinguir-se em nada do sincretismo maçônico, mas condena o sincretismo, fala de respeito à pessoa do próximo e dá ocasião suficiente para que mais de um teólogo concilie seus propósitos com os de Pio XI em Mortalium animos. Ao católico que evitou o contato com esse ambiente de confusão que envolve praticamente toda a Igreja, custa crer – sabemo-lo por experiência própria – que pessoas com reta intenção possam conciliar a tal ponto a luz com as trevas, mas os sofismas que realizam esse milagre alcançaram altíssimo grau de perfeição. O resultado de tudo isso é que nos Papas conciliares não se torna notória a má-fé do herético ou a má vontade do cismático. E não nos peçam que o provemos, porque, com o perdão do Leitor, a não notoriedade é algo notório e não se demonstra o evidente: a grande maioria dos católicos bem formados de hoje, que percebem a intrínseca malícia do magistério conciliar, não consideram que os Papas tenham deixado de ser Papas.
Os que recorrem à sedevacância para resolver o enigma da esfinge conciliar vêem-se obrigados a dar uma série de duvidosas explicações para superar os múltiplos problemas que surgem diante da permanência na Cátedra de São Pedro de Papas que não são Papas, mas são por todos considerados como tais. É verdade que a distinção formal-material na ocupação da Sede pontifícia foi utilizada muitas vezes pelos teólogos, como em tantas outras questões. Também é verdade que é preciso distinguir entre o poder de eleger o Papa que a Igreja possui e o poder de conferir-lhe a autoridade, poder que só Cristo possui. Mas parece impossível que um bispo eleito não receba a autoridade de Cristo e, no entanto, possa aceitar validamente a eleição, como se o óbice que impede a primeira coisa não impedisse também a segunda. Se o eleito tivesse uma intenção de tal modo contrária à requerida num Papa que impedisse a recepção do poder pontifico por parte de Cristo – por herege, cismático ou perverso –, também seria óbice para a aceitação válida da eleição. Os teólogos falam de ocupação puramente material de uma sede só quando há usurpação ilegítima por parte do bispo.[1] Assim como, na geração, da disposição da matéria por parte dos pais se segue necessariamente a criação da alma por parte de Deus, da eleição validamente aceita por parte da Igreja se segue a comunicação do poder por parte de Nosso Senhor. As disposições requeridas para aquilo são as mesmas que para isto.[2]
De maneira geral, os que sustentam as teses sedevacantistas defendem um alto conceito da autoridade do magistério da Igreja. Se conseguissem compreender que se pode resolver o dilema suscitado pelo magistério conciliar sem atentar nem minimamente contra a autoridade do magistério tradicional, não só no campo em que se joga a infalibilidade, mas também em todo o âmbito de seu magistério, já não se veriam obrigados a aderir a explicações tão cheias de obscuridades.

B) Ilegitimidade do Concílio Vaticano II
 Ainda que se possa argüir a ilegitimidade do Concílio e, se Deus não dispuser outra coisa, a própria autoridade da Igreja tenha de resolver essa questão um dia, como porém assinalamos no argumento geral, não se pode alegar tal razão para explicar a existência de erros doutrinais nos documentos conciliares se ela não for justificada por fatos notórios antecedentes à promulgação desses documentos. Pois bem, ainda que as irregularidades iniciais no desenvolvimento do Concílio tenham preocupado muitas pessoas – rejeição dos esquemas preparatórios, o silenciar da Cúria, o avanço dos elementos progressistas, etc. –, a ninguém isso pareceu suficiente para pôr seriamente em dúvida a legitimidade do Concílio. A perplexidade veio depois, quando as más sementes semeadas nos documentos começaram a dar seu venenoso fruto nas reformas pós-conciliares.
Pessoalmente pensamos que os vícios do Concílio foram tão essenciais e profundos, que algum futuro Papa – ou Nosso Senhor mesmo – deverá declará-lo inválido. Parece impossível separar o joio do trigo em documentos viciados até no próprio desenho temático. Mas, como começamos a mostrar no corpus e terminaremos de fazer nos artigos seguintes, não é necessário resolver este ponto para retirar toda a autoridade ao magistério conciliar. Pela atitude liberal que expressamente tomou ao pronunciar-se, ele não quis impor sua autoridade, deixando suas declarações sem as garantias da assistência do Espírito Santo.
Não nos parece que haja incoerência entre considerar o Concílio inválido e supor, no entanto, que os Papas conciliares não perdem sua autoridade. O Papa pode realizar um ato, promulgar uma lei ou estabelecer uma instituição que – se não estiverem cobertos pela infalibilidade – sejam inválidos por ser contrários ao bem comum, e no entanto não necessariamente perde por isso o poder pontifício. Por ser gravemente contrário ao bem comum da Igreja, foi inválido o ato pelo qual foram excomungados Mons. Lefebvre e os outros cinco bispos defensores da fé; pelo mesmo motivo é inválida a lei pela qual se promulgou o Novus Ordo Missae; e pensamos que se invalidou também o Concílio ao desviar-se de seus fins. Sim, porque um concílio é uma instituição temporal cuja existência depende dos atos pelos quais é convocado e dirigido pela legítima autoridade, e pode tornar-se ilegítimo e inválido sem que os bispos que o integram percam necessariamente por isso seus respectivos poderes na Igreja.
Opinamos que a invalidade se consuma na primeira sessão, quando o grupo modernista dos bispos do Reno, apoiados pelo Papa, se apodera do Concílio orientando-o a seus fins.[3] No entanto, este fato tremendo só se foi evidenciando pouco a pouco, por seus frutos; e não parece que possa chegar a ser notório enquanto a própria autoridade da Igreja não o declarar. Se em meio dessa situação o Papa tivesse pensado em definir ex cathedra alguma sentença, esta seria infalível em razão da autoridade única do Pontífice e não de um Concílio que propriamente não existiria como tal. Mas longe se estava de fazê-lo. Diante da rejeição de todas as orientações das comissões preparatórias por parte do grupo liberal, João XXIII só pensa em elogiar – no discurso de encerramento da primeira sessão – “a santa liberdade dos filhos de Deus”.[4]

C) Sobre o defeito de confirmação por parte dos Papas conciliares
 O exercício liberal da autoridade surpreende o leigo porque mostra ao mesmo tempo, em aparente incoerência, aspectos de extrema fraqueza e de extremo despotismo; mas isso não provém de defeitos de temperamento, e sim dos princípios mesmos do liberalismo. A autoridade liberal torna-se fraca diante das vozes que encarnam a “opinião pública”: o jornalismo na ordem política e os neoteólogos no religioso (cf. o próximo artigo); mas, uma vez justificada pelo infalível “sentir comum”, transforma-se no mais absoluto dos poderes. Paulo VI cedeu gemendo a alguns poucos peritos conciliares, mas tratou como a crianças a multidão de bispos do Coetus Internationalis Patrum; foi cem vezes vencido pelos especialistas do Consilium para a reforma da liturgia, mas impôs seu missal passando por cima das resistências mais legítimas de bispos, sacerdotes e fiéis do mundo inteiro. Por isso não se pode dizer que o Concílio se tenha desviado contra a vontade dos Papas conciliares, senão que, muito pelo contrário, o pôde fazer graças ao despótico apoio deles.
No entanto, é preciso afirmar que faltou completamente uma verdadeira “confirmação” por parte do Romano Pontífice aos atos e decretos do Concílio. Como resulta do que expusemos – e do que exporemos nos próximos artigos –, para a mentalidade liberal o termo “confirmar” significa algo não só diferente do mas oposto ao que significava para o pensamento tradicional. Um Papa católico “confirma” as declarações de todo um Concílio fundado na própria autoridade que tem de Cristo, julgando tudo como supremo mestre, de tal maneira que, se lhe parecem corretas, as aprova firmando-as como doutrina; se não lhe parecem corretas, reprova-as, e de nada vale o dito aos olhos da Igreja. Um Papa liberal, em contrapartida, “confirma” os ensinamentos do Concílio considerando-se instrumento da comunidade eclesial para autenticar como supremo tabelião o que o Espírito Santo inspirou ao sensus fidelium, os neoteólogos expressaram em doutrinas e os bispos unificaram em poucas sentenças; de maneira tal que, pense o que pensar, é obrigado a assinar o que o Espírito ensina na Igreja. Pois bem, ainda que o Espírito Santo não deixe de inspirar a menor das almas, não garante de modo algum as manifestações exteriores do comum dos fiéis, cada vez mais manipuladas pelos donos da publicidade. Portanto, a “confirmação” liberal não vale nada e deixa as declarações conciliares não só sem a nota de infalibilidade, mas também – como depois diremos – sem nenhuma autoridade doutrinal. Os Papas conciliares aprovaram e impuseram a doutrina do Concílio, e da maneira mais tirânica, mas não como mestres vicários de Cristo, única modalidade assistida pela infalibilidade (cf. resposta à 4ª objeção).

Docilidade católica diante do magistério
 O magistério da Igreja participa da mesma autoridade de Deus ao ensinar, razão por que se lhe deve em grau máximo “fé de autoridade” e não “fé de credibilidade”. Quando se pronuncia, o católico só deve julgar “quem o diz” e ser dócil em aceitar “o que se diz”. Mas, tanto ao julgar “quem o diz” como ao aceitar “o que se diz”, deve fazê-lo formalmente e não materialmente:
– Ao julgar “quem” ensina, não deve considerar tanto a pessoa física que se pronuncia, seja o Papa ou os bispos, mas a pessoa moral ou personalidade assumida em cuja autoridade se funda o ensinamento. O católico deve reconhecer de maneira clara e expressa que os Pastores se pronunciam in pessoa Christi e não em pessoa própria ou de qualquer outra entidade criada: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um Evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema” (Gál., I, 8).
– Ao aceitar “o que” se ensina, não devem considerar somente as sentenças pronunciadas, mas também o grau de credibilidade que a mesma autoridade lhes reconhece: infalíveis, certas ou opináveis. E também nisso é preciso docilidade para não diminuir nem somar fazendo, por exemplo, com que o que se ensina como certo seja diminuído a opinável ou aumentado a infalível.
Pois bem, por causa de seu liberalismo, o magistério conciliar apresenta-se diante do atônito católico de maneira inédita em ambos os aspectos:
– Não se expressa nem in pessoa Christi, nem in propria pessoa, mas “in pessoa Populi Dei”, argüindo erradamente que também é infalível em seu sensus fidei.
– Não propõe suas novidades como infalíveis, nem como certas, nem como opináveis, mas como “discutíveis”, crendo equivocadamente que alcançam infalibilidade através do “diálogo em comunhão” do Povo de Deus (cf. próximo artigo).
Portanto, o católico dócil ao magistério, ao não reconhecer claramente a voz do Mestre no novo e estranho modo do magistério conciliar, não aceita nada que lhe pareça diferente do Evangelho anunciado pelo magistério infalível anterior; e, como os próprios Pastores o convidam ao diálogo, vendo a fé em perigo, vê-se obrigado a entrar numa discussão inconcebível no marco do magistério tradicional.
[...] 
 * * *
 A nós mesmos não deixam de assustar nossas próprias conclusões, ao ouvirmos afirmar que a autoridade na Igreja, a partir do Concílio, se exerce de modo tão corrompido. Mas o liberalismo da hierarquia conciliar não é fantasia nossa; é desoladora realidade. E desde a Pascendi as nefastas influências das doutrinas liberais na concepção e exercício da autoridade são doutrina conhecida. Só resta ousar tirar a evidente conclusão destas duas premissas. Se o senhor, Padre, também o fizesse, poderia compreender que, entre a vertigem do sedevacantismo e a perplexidade da obediência, há lugar para a lúcida e católica resistência que Monsenhor Lefebvre nos ensinou.»


Notas:

[1] D. Sanborn, em seu artigo “De Papatu materiali” (Sacerdotium XI, 1994), traz uma longa série de citações em que se mostra que os teólogos distinguiram a sucessão apostólica formal com posse da autoridade de uma sucessão material em que há posse da sede sem posse da autoridade. Mas é claro em todos os autores e textos citados que se trata de uma posse ilegítima por usurpação e não de uma posse que suponha eleição validamente recebida. Como exemplo, baste o primeiro citado: “Não só é necessário”, diz Zubizarreta, “a sucessão apostólica material, que consiste na mera série de pastores, mas também a formal, enquanto que cada um sucede legitimamente os outros [...] razão por que os cismáticos e intrusos, que por violência ou fraude usurparam a sede, interrompem a sucessão formal, e se diz que começam uma nova série de pastores” (p. 5).
[2] A comparação é de São Roberto Bellarmino (De Romano Pontifice, l. 2, c. 17), citado por D. Sanborn (op. cit., p. 10). Se o sujeito eleito tem o óbice de ainda não ter sido consagrado bispo, poderia falar-se de “eleição”, mas nãosimpliciter, e sim secundum quid: ele é eleito com a condição de vir de fato a ser bispo. Assim que o for, pode-se falar de eleição simpliciter, porque até então não existe o sujeito enquanto tal. Por isso, mesmo neste caso podemos sustentar a afirmação: a uma eleição válida se segue a comunicação da autoridade.
Na seção 2ª da 2ª parte do trabalho de Sanborn (Sacerdotium XVI, 1996), o autor estende-se longamente (p. 38 a 48) em provar a possibilidade de tal separação entre matéria e forma do pontificado, utilizando quase exclusivamente argumentos impróprios por analogia com a filosofia da natureza, e não tanto argumentos próprios teológico-canônicos, razão por que toda a sua exposição se torna muito imprecisa apesar do vocabulário escolástico empregado. Ele também compara a eleição com a geração (p. 44), assinalando que, se na matéria produzida pelos pais aparece alguma indisposição, ela não recebe a forma; mas parece que uma eleição validamente aceita teria de ser comparada antes a uma concepção que chega a bom termo por parte dos pais, como fizemos nós. Mas qual o valor dessa maneira de discutir? Nunca um teólogo ou um canonista achou lugar para esta distinção, e Sanborn não aduz nenhuma razão teológica clara que a justifique. Se porém o autor defende a muito duvidosa existência de uma posse puramente material mas legítima da Sede Apostólica, é para justificar a existência de outro poder, ainda mais duvidoso: o Papa material-legítimo teria o poder de nomear eleitores (cardeais). Assim se explicaria que João Paulo II e seus sucessores possam continuar a ser Papas materiais, mas legitimamente eleitos. As razões que justificariam esse poder são as seguintes (Sacerdotium XVI, 1996, pp. 29-38): a autoridade tem dois objetos ou fins; o primeiro e principal é legislar, o segundo é eleger o sujeito que deve exercer a autoridade. A objetos realmente diferentes, faculdades realmente diferentes: a faculdade de legislar vem de Deus e a possui o Papa em razão de sua forma (autoridade apostólica); a faculdade de eleger vem da Igreja e a possui o Papa em razão da matéria (eleição válida). O ius eligendi não implica ter autoridade, porque não se ordena a legislar em ordem ao bem comum, mas se ordena a designar o sujeito da autoridade. Daí que o Papa mere materialistenha o poder de designar eleitores, poder comunicado pela Igreja em razão da eleição válida.
Não é preciso ser especialista em direito canônico para notar as enormes obscuridades dessa explicação. O ius eligendi pertence certamente aos Romanos Pontífices, que estabelecem as leis que regem as eleições comunicando esse poder aos eleitores. Se durante a vacância da Sede Apostólica a Igreja possui o poder de eleger, tem-no comunicado pelo Papa, e só no grau e medida em que ele o comunicou: “As leis promulgadas pelos Pontífices Romanos”, declara Pio XII, “não podem de maneira alguma ser corrigidas ou mudadas pela assembléia dos Cardeais da Igreja Romana durante sua vacância, e nada se lhe pode subtrair ou acrescentar, nem se pode conceder nenhuma dispensa para o conjunto ou parte dessas leis. Isso vale principalmente para as Constituições pontificais publicadas para regulamentar a eleição do Pontífice Romano. Mais ainda, se se fizer ou pretender fazer o que quer que seja contra esta prescrição, por Nossa suprema autoridade o declaramos nulo e sem valor” (Const. Apost. Vacantis Apostolicae Sedis, 8 de dezembro de 1945, nº 3). Embora os Papas pudessem delegar o poder de nomear cardeais, nunca o fizeram, e até proíbem de reabilitar os depostos (cf. Vacantis Apostolicae Sedis, nº 36). Ademais, o ius eligendi pertence ao Papa porque tem enormemente que ver com o bem comum da Igreja, pois poucas coisas importam tanto como a ordenada designação do sujeito da autoridade: “[Nossos Predecessores] esforçaram-se por dedicar vigilante cuidado e por dar saudáveis regras a um assunto muito sério da Igreja que Deus lhes tinha confiado, a saber: a eleição do Sucessor de Pedro” (Vacantis Apostolicae Sedis, preâmbulo). Pois bem, supor que Mons. Montini ou Wojtyla, por terem sido validamente eleitos e apesar de não serem formalmente Papas, têm o poder de designar cardeais é uma concessão muito generosa, ainda mais vinda de um sedevacantista. O problema é que não só escolheram cardeais, mas cada um desses Pontífices estabeleceu novas leis no regime de eleição (Paulo VI pela Const. Apost. Romano Pontifici eligendo, de 1º de outubro de 1975; e João Paulo II pela Const. Apost. Universi Dominici gregis, de 22 de fevereiro de 1996).
Outras versões do sedevacantismo são mais simples: os Papas conciliares são Papas putativos, quer dizer, só o são segundo a opinião; e a Igreja supriria a jurisdição necessária naqueles atos indispensáveis ao bem comum da Igreja. Mas continua de pé a objeção: teriam perdido a autoridade de maneira oculta, surpreendendo a Igreja pela promulgação de erros nos documentos conciliares.
[3] Ao terminar a primeira sessão, o então Padre Ratzinger declarava que “o caráter verdadeiramente histórico da primeira sessão do Concílio” consistiu na “forte reação contrária ao espírito que animou o trabalho preparatório” (cf. R. Wiltgen, op. cit., “Resultados da primeira sessão”, p. 70). As comissões preparatórias trabalharam com espírito católico pelo bem da Igreja; no final da primeira sessão, o Concílio era animado por um espírito contrário...
[4] João XXIII, Discurso de encerramento da primeira etapa conciliar, 8 de dezembro de 1962, n. 10: “Em um quadro tão amplo, compreende-se muito bem que tenha sido preciso algum tempo para chegar a um acordo sobre tudo aquilo que, salva caritate, era motivo de compreensíveis e ansiosas divergências. Também isso tem sua explicação providencial para o realce da verdade e demonstrou diante de todo o mundo a santa liberdade dos filhos de Deus tal como se dá na Igreja” (Concílio Vaticano II, Madri, BAC, 1968, p. 1038).

Fonte: http://www.nossasenhoradasalegrias.com.br/1999/10/sedevacantismo-ilegitimidade-do.html

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